Ficha Técnica:Acabou Chorare.
Coordenação geral: João Araújo;Produção musical – Eustáquio Sena;Gravadora: Som Livre. Estúdio: Somil
Produção gráfica e fotos: Antonio Luis (Lula);Montagem do álbum – Joel Cocchiararo.
Músicos: Pepeu (Guitarra; Violão solo e Craviola); Jorginho (bateria; bongô e Cavaquinho); Baixinho (Bateria, Bumbo e Bongô); Dadi (Baixo); Moraes Moreira (Violão base);Paulinho Boca de Cantor (Pandeiro); Baby Consuelo (Afoxé, triangulo e maracas) e Bolacha (Bongô). Arranjos: Moraes Moreira e Pepeu Gomes Antes de iniciar propriamente a análise da obra, preciso nos situar no momento anterior ao seu lançamento, mas que, certamente, determinou a sua concepção.
Início dos anos 70 e o país acabara de passar pelos seus movimentos musicais mais importantes: Bossa Nova e Tropicália. Foi pouco após ao surgimento e explosão desta última "vanguarda" que se formou os Novos Baianos[1], e assim, com clara orientação tropicalista, haviam concebido e lançado Ferro na Boneca [1970], essencialmente roqueiro; o quase experimental No Fim Do Juízo [1971] e mais dois compactos [2]. Após mudarem-se para um apartamento, em Botafogo, no Rio de Janeiro, aconteceu um encontro que entraria para a história da música brasileira. Convidado pelo integrante da banda e poeta, Luiz Galvão, João Gilberto foi visitá-los; ao abrir a porta Dadi pensou que aquele homem de terno era um policial, mas felizmente era João e o violão, que para a surpresa de todos ali que eram seus fãs, reinventou a forma destes baianos ver e tocar música, principalmente, neste aspecto, Moraes Moreira e Pepeu Gomes. João não se limitou exlusivamente a aproximá-los de uma incorporação deles à bossa-nova, como também indicou que fizessem releituras, assim como ele, de sambas antigos, o que foi seguido não só neste instante mas nos outros albúns da banda.
Assim começou a história do ACABOU CHORARE, título um tanto insólito, mas explico-lhes: numa dessas visitas João contou que, no período que passara o exílio no México, sua filha, a hoje cantora Bebel Gilberto, frequentemente misturava o português com o espanhol, e certa vez, ao cair, enunciou: "Acabou Chorare, papai".
Iniciando, de fato, o albúm, a primeira música é Brasil Pandeiro, cantada com um sabor e swingue singular por Baby Consuelo, revela as preceptivas do albúm, o que fariam à partir desse instante, expressa em versos como:
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor
Eu fui à Penha e pedi à padroeira para me ajudar
Salve o Morro do Vintém, pendura a saia que eu quero ver
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar”
[...]
"O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada"
Estão aí registradas a "receita" que muitos[3] usaram para definir o grupo como uma mistura de Jimi Hendrix [que aqui poderia ser o "Tio Sam"] e "batucada" representado pelos ritmos brasileiros e também por Jacob do Bandolim[3]. Brasil Pandeiro é uma nova leitura de um samba exaltação[4], dos anos 30, composta por Assis Valente, e esta era a indicação que mencionei que João Gilberto fez para o grupo.
A segunda faixa é Preta Pretinha cantada por Moraes e escrita por Galvão, que conta no livro que escreveu sobre Os Novos Baianos, que a letra nasceu de um romance mal sucedido[5].
“A jovem combinou comigo para que eu fosse a Niterói conhecer seu pai e, na volta, ela viria morar comigo no apartamento dos Novos Baianos, em Botafogo. Pegamos a barca, conheci o pai dela, mas, na volta, ela se arrependeu e voltou para o seu namorado. À noite, escrevi a letra sob o impacto desse insucesso e, na certa, o subconsciente deu uma panorâmica em todas as minhas histórias de amor.”
Assim, veio-lhe à lembrança a figura de Socorrinho (“Só, somente só...”), uma antiga namorada de Juazeiro, que completou a inspiração para os versos de “Preta Pretinha”:
“Enquanto eu corria / assim eu ia / lhe chamar / enquanto corria a barca / em minha cabeça / não passava / só, somente só? assim vou lhe chamar? assim você vai ser / lá-já-lá-iá / lá-iá-lá-iá-lá-iá / preta, preta pretinha / (...) / abre a porta e a janela / e vem ver o sol nascer...”
Preta Pretinha, predominantemente em alguns trechos, cria uma impressão cinematrográfica, imagética ou fanepéica, segundo definiu Augusto de Campos, de Pound: "Fanepéia: Uma lance de imagens sobre a imaginação visual"[6]. Veja se não é isso que ocorre nestes trechos:
"Abre a porta e a janela. E vem ver o sol nascer" e "Enquanto eu corria. Assim eu ía lhe, chamar!Enquanto corria a barca".
O terceiro sucesso é
Tinindo Trincando com outra deliciosa interpretação de Baby e também o primor criativo do aqui abrasivo Pepeu Gomes, que conseguiu expressar em frases, riffes e solo, [7] desde o começo, o que está no título da música. Foi no limiar ao tinir e trincar na guitarra. Sobretudo é notável, nesse momento, a união e completude que esses dois -Pepeu e Baby- alcançaram; o que me faz concluir, nessa música, e em outras como
A Menina Dança e especialmente
Brasileirinho que eles eram os parceiros musicalmente perfeitos dentro de suas características [o que me lembra o que eu disse sobre João e
Astrud Gilberto no primeiro artigo que escrevi
aqui].
Swing de Campo Grande exemplifica bem, com a mistura de samba, partes de chorinho, junto à percussão, o trabalho orgânico do grupo em que, seja nessa ou noutras faixas, desde Baby (Afoché-triângulo, maracas) e
Paulinho Boca de Cantor (Pandeiro) todos tocam. Destaco aqui também a "banda dentro da banda", os antes chamados
Os Leifs[8] e que se tornaram conhecidos, posteriormente, como
A Cor do Som que tocou e foi importante para vários outros artistas também como:
Gal Costa -
Tigresa com eles é a versão perfeita -;
Gilberto Gil,
Caetano,
Bethânia - tocaram para os
Doces Bárbaros -;
Chico Buarque - destaque para
Hino de Duran. [Ainda farei a seguinte enquete: Qual foi a maior banda de apóio da história? A
Cor do Som;
Vitória Régia - que tocou para
Tim Maia no mítico
Racional -;
Som Imaginário - que participou de
O Milagre dos Peixes com
Milton Nascimento-; ou
Spiders From Mars do albúm do
David Bowie/Ziggy Stardust " The Rise an Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars.Voltando ao disco [Concentre-se no disco!]...
A faixa-título é genericamente uma bossa nova [9] - gênero que não é somente a batida do violão e o canto característico mas também é inerente uma linguagem "leve" [10]. A canção assemelha-se à uma música de ninar[11] ou feita para acalmar criança, mas paradoxalmente [e isso que é bom! Pois estamos falando de música e poesia, portanto não há a necessidade de sermos monossêmicos] sugere algo de outra ordem nos vocábulos ou frases como: "bu-bu-bulindo" que apesar de se conectar à forma que alguns pais falarem às crianças recém-nascidas balbuciando; liga-se também à bulinar o que é reforçado, na música, pelo vocábulo, cama e algumas onomatopéias como "
mé".
Chegamos agora, considerando, é claro, toda a unidade da obra, ao seu ponto mais elevado:
Mistério do Planeta. Composta por Morais e Galvão a letra, como sempre deveria acontecer, mostra e/ou segue a orientação do título, e portanto, não é de fácil intelecção. Vou tentar iluminar alguns mistérios.
Os perfeitos arranjos iniciais, assim como todos do elepê, são de Moraes e Pepeu, e a interpretação de uma beleza lírica, aliás o momento é de um lirismo ímpar, fica à cargo de Paulinho Boca de Cantor. O Mistério explícito na música é aquele que se não encontrará nos livros, teorias e etc, ele só será encontrado vivendo;
"Vou mostrando como sou e vou sendo como posso. Jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos. "
E nas três fases da vida, que é comum à todos [ou deveria] :
"O tríplice mistério do "stop", que eu passo por e sendo ele no que fica em cada um".
Todo esse clima é muito bem construído e sustentado, além dos citados arranjos, pelo baixo e percussão do pessoal do A Cor do Som, e culmina com um dos maiores solos de toda a história: cortante, limpo, preciso, sem "fritações", - Pepeu no auge dos seus 20 anos!.
A próxima A Menina Dança parece ter sido escrita para o jeitinho irreverente de Baby [claro que antes dela virar evangélica. Sim, isso mesmo, Evangélica!], a letra já foi interpretada como mostrando uma gravidez e também como de ter conotação sexual. As duas posições são válidas considerando versos como : "E dentro da menina, a menina dança" e "Mas eu mesma viro os olhinhos"; mas como diz outra música dos Novos Baianos [12] "Mãe pode ter e ser bebê e até pode ser Baby também", então, assim, contemplemos as duas proposições.
Caminhando já para a parte final do disco ouçamos Besta é Tú que, num primeiro momento, sempre se mosta como sendo não muito profunda e até mesmo uma brincadeira, mas num outro nível, parece nos alertar contra a realidade que, de maneira vária, apreendemos como normal. Contrariando essa primeira impressão, a canção tem algo de filosófico que me remete à Nietzsche, precisamente, Assim Falou Zaratustra, que nos seus discursos, o terceiro, Zaratustra profere algumas palavras, as quais transcrevo algumas agora, para uma melhor entendimento[13]:
DOS CRENTES EM ALÉM MUNDOS.
Um dia, Zaratustra elevou a sua ilusão mais além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos.Obra de um deus dolente e atormentado lhe pareceu então o mundo.“Sonho me parecia, e ficção de um deus: vapor colorido ante os olhos de um divino descontente.Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tu, vapor colorido me parecia tudo ante os olhos criadores. O criador queria desviar de si mesmo o olhar... e criou o mundo.Para quem sofre é uma alegria esquecer o seu sofrimento. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo me pareceu um dia o mundo.Este mundo, o eternamente imperfeito, me pareceu um dia, imagem de uma eterna contradição, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador.Da mesma maneira projetei eu também a minha ilusão mais para além da vida dos homens à semelhança de todos os crentes em além-mundos. Além dos homens, realmente?Ai, meus irmãos! Este deus que eu criei, era obra humana e humano delírio, como todos os deuses.Era homem, tão somente um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma saía das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e nunca veio realmente do outro mundo.Que sucedeu, meus irmãos? Eu, que sofria, dominei-me; levei a minha própria cinza para a montanha; inventei para mim uma chama mais clara. E vede! O fantasma ausentou-se!Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas. Assim falo eu aos que creem em além-mundos.Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas. Assim falo eu aos que creem em além-mundos.Sofrimentos e incompetências; eis o que criou todos os além-mundos, e esse breve desvario da felicidade que só conhece quem mais sofre. A fadiga, que de um salto quer atingir o extremo, uma fadiga pobre e ignorante, que não quer ao menos um maior querer; foi ela que criou todos os deuses e todos os além-mundos" [...]
[Grifos Meus]
A instrumental
Bilhete pra Didi, explicita toda essa mistura e versatilidade que venho ressaltando,
frevo, rock, baião, todos aqui, em mais uma bela demonstração de pegada de Pepeu Gomes. [Ah! O Didi que aparece no nome da música é o baixista
Didi Gomes, irmão de Pepeu, que participa nessa gravação e entrou definitivamente pra banda em 76].
Pra fechar a obra, temos um repeteco de
Preta Pretinha, versão reduzida, 3 minutos e 25 segundos, que foi pensada para ser tocada nas rádios, pois a outra, de mais de 6 minutos e meio, era impensável de serem lá vinculadas, mas contrariando expectativas esta última fez o maior sucesso.
Espero que tenha sucitado, com essa exposição, a vontade de vocês ouvirem este álbum que, para limitá-lo à uma classificação é, para mim, o maior albúm de música popular brasileira de todos os tempos. Não só para mim, mas outros orgãos de comunicação, como a revista
Rolling Stone, também têm este vaticínio. [
vejam aqui]
Bem, descansem da [extensa] leitura.
Link para baixar o CD
aqui.
E Bom Som!
Sofista Minimus.
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[1]. Novos, pois, velhos baianos se tratavam de Caetano, Gil, Gal e Bethânia.
[2]. Um compacto simples e outro duplo. Informações e datas no site "Oficial":
http://www.sombras.com.br/novosb/novosb.htm[3] . O próprio Moraes Moreira, no programa
Ensaio da Tv Cultura, em 1973, afirmou que o grupo seria uma mistura de Jimi Hendrix com Jacob do Bandolim.
[4]. O Samba-exaltação, era um [sub-] gênero que se propunha a elevar as características sejam elas regionais ou de todo país. Teve talvez o seu maior expoente em
Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, gravada na década de 30.
[5]. Luiz Galvão. Anos 70: Novos e Baianos.
[6]. Ezra Pound. ABC da Literatura. Introdução de Augusto de Campos.
[7]. Esse expressão da guitarra, presente, do início ao fim da música, conexa com a harmonia, é que me faz gostar, entre outras músicas, de Iron Man do Black Sabbath.
[8]. Pepeu Gomes e seu irmão o baterista Jorginho também faziam parte da banda, mas ao se casar com Baby, foi incorporado aos Novos Baianos.
[9]. Há também faixas, se não genuinamente bossanovísticas, fortemente influenciadas por esta como Quando Você Chegar até a satírica Sensibilidade da Bossa etc.
[10]. Ruy Castro. Chega de Saudade. pág. 321.
[11]. Bebel (Isabel), do Albúm Novos Baianos ou Linguagem do Alunte, composta por João Gilberto também é uma canção de ninar.
[12]. Sorrir e Cantar como Bahia do Albúm Novos Baianos Futebol Clube, de 1973.
[13]. Nietzsche. Assim Falava Zaratrusta. pag. 42.