sexta-feira, 10 de abril de 2009

Acabou Chorare, Novos Baianos.


Ficha Técnica:

Acabou Chorare.

Coordenação geral: João Araújo;Produção musical – Eustáquio Sena;Gravadora: Som Livre. Estúdio: Somil
Produção gráfica e fotos: Antonio Luis (Lula);Montagem do álbum – Joel Cocchiararo.
Músicos: Pepeu (Guitarra; Violão solo e Craviola); Jorginho (bateria; bongô e Cavaquinho); Baixinho (Bateria, Bumbo e Bongô); Dadi (Baixo); Moraes Moreira (Violão base);Paulinho Boca de Cantor (Pandeiro); Baby Consuelo (Afoxé, triangulo e maracas) e Bolacha (Bongô).

Arranjos:
Moraes Moreira e Pepeu Gomes



Antes de iniciar propriamente a análise da obra, preciso nos situar no momento anterior ao seu lançamento, mas que, certamente, determinou a sua concepção.

Início dos anos 70 e o país acabara de passar pelos seus movimentos musicais mais importantes: Bossa Nova e Tropicália. Foi pouco após ao surgimento e explosão desta última "vanguarda" que se formou os Novos Baianos[1], e assim, com clara orientação tropicalista, haviam concebido e lançado Ferro na Boneca [1970], essencialmente roqueiro; o quase experimental No Fim Do Juízo [1971] e mais dois compactos [2]. Após mudarem-se para um apartamento, em Botafogo, no Rio de Janeiro, aconteceu um encontro que entraria para a história da música brasileira. Convidado pelo integrante da banda e poeta, Luiz Galvão, João Gilberto foi visitá-los; ao abrir a porta Dadi pensou que aquele homem de terno era um policial, mas felizmente era João e o violão, que para a surpresa de todos ali que eram seus fãs, reinventou a forma destes baianos ver e tocar música, principalmente, neste aspecto, Moraes Moreira e Pepeu Gomes. João não se limitou exlusivamente a aproximá-los de uma incorporação deles à bossa-nova, como também indicou que fizessem releituras, assim como ele, de sambas antigos, o que foi seguido não só neste instante mas nos outros albúns da banda.

Assim começou a história do ACABOU CHORARE, título um tanto insólito, mas explico-lhes: numa dessas visitas João contou que, no período que passara o exílio no México, sua filha, a hoje cantora Bebel Gilberto, frequentemente misturava o português com o espanhol, e certa vez, ao cair, enunciou: "Acabou Chorare, papai".
Iniciando, de fato, o albúm, a primeira música é Brasil Pandeiro, cantada com um sabor e swingue singular por Baby Consuelo, revela as preceptivas do albúm, o que fariam à partir desse instante, expressa em versos como:


“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor
Eu fui à Penha e pedi à padroeira para me ajudar
Salve o Morro do Vintém, pendura a saia que eu quero ver
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar”

[...]

"O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada"



Estão aí registradas a "receita" que muitos[3] usaram para definir o grupo como uma mistura de Jimi Hendrix [que aqui poderia ser o "Tio Sam"] e "batucada" representado pelos ritmos brasileiros e também por Jacob do Bandolim[3]. Brasil Pandeiro é uma nova leitura de um samba exaltação[4], dos anos 30, composta por Assis Valente, e esta era a indicação que mencionei que João Gilberto fez para o grupo.

A segunda faixa é Preta Pretinha cantada por Moraes e escrita por Galvão, que conta no livro que escreveu sobre Os Novos Baianos, que a letra nasceu de um romance mal sucedido[5].


“A jovem combinou comigo para que eu fosse a Niterói conhecer seu pai e, na volta, ela viria morar comigo no apartamento dos Novos Baianos, em Botafogo. Pegamos a barca, conheci o pai dela, mas, na volta, ela se arrependeu e voltou para o seu namorado. À noite, escrevi a letra sob o impacto desse insucesso e, na certa, o subconsciente deu uma panorâmica em todas as minhas histórias de amor.”
Assim, veio-lhe à lembrança a figura de Socorrinho (“Só, somente só...”), uma antiga namorada de Juazeiro, que completou a inspiração para os versos de “Preta Pretinha”:

“Enquanto eu corria / assim eu ia / lhe chamar / enquanto corria a barca / em minha cabeça / não passava / só, somente só? assim vou lhe chamar? assim você vai ser / lá-já-lá-iá / lá-iá-lá-iá-lá-iá / preta, preta pretinha / (...) / abre a porta e a janela / e vem ver o sol nascer...”


Preta Pretinha, predominantemente em alguns trechos, cria uma impressão cinematrográfica, imagética ou fanepéica, segundo definiu Augusto de Campos, de Pound: "Fanepéia: Uma lance de imagens sobre a imaginação visual"[6]. Veja se não é isso que ocorre nestes trechos:


"Abre a porta e a janela. E vem ver o sol nascer" e "Enquanto eu corria. Assim eu ía lhe, chamar!Enquanto corria a barca".



O terceiro sucesso é Tinindo Trincando com outra deliciosa interpretação de Baby e também o primor criativo do aqui abrasivo Pepeu Gomes, que conseguiu expressar em frases, riffes e solo, [7] desde o começo, o que está no título da música. Foi no limiar ao tinir e trincar na guitarra. Sobretudo é notável, nesse momento, a união e completude que esses dois -Pepeu e Baby- alcançaram; o que me faz concluir, nessa música, e em outras como A Menina Dança e especialmente Brasileirinho que eles eram os parceiros musicalmente perfeitos dentro de suas características [o que me lembra o que eu disse sobre João e Astrud Gilberto no primeiro artigo que escrevi aqui].

Swing de Campo Grande exemplifica bem, com a mistura de samba, partes de chorinho, junto à percussão, o trabalho orgânico do grupo em que, seja nessa ou noutras faixas, desde Baby (Afoché-triângulo, maracas) e Paulinho Boca de Cantor (Pandeiro) todos tocam. Destaco aqui também a "banda dentro da banda", os antes chamados Os Leifs[8] e que se tornaram conhecidos, posteriormente, como A Cor do Som que tocou e foi importante para vários outros artistas também como: Gal Costa - Tigresa com eles é a versão perfeita -; Gilberto Gil, Caetano, Bethânia - tocaram para os Doces Bárbaros -; Chico Buarque - destaque para Hino de Duran. [Ainda farei a seguinte enquete: Qual foi a maior banda de apóio da história? A Cor do Som; Vitória Régia - que tocou para Tim Maia no mítico Racional -; Som Imaginário - que participou de O Milagre dos Peixes com Milton Nascimento-; ou Spiders From Mars do albúm do David Bowie/Ziggy Stardust " The Rise an Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars.

Voltando ao disco [Concentre-se no disco!]...

A faixa-título é genericamente uma bossa nova [9] - gênero que não é somente a batida do violão e o canto característico mas também é inerente uma linguagem "leve" [10]. A canção assemelha-se à uma música de ninar[11] ou feita para acalmar criança, mas paradoxalmente [e isso que é bom! Pois estamos falando de música e poesia, portanto não há a necessidade de sermos monossêmicos] sugere algo de outra ordem nos vocábulos ou frases como: "bu-bu-bulindo" que apesar de se conectar à forma que alguns pais falarem às crianças recém-nascidas balbuciando; liga-se também à bulinar o que é reforçado, na música, pelo vocábulo, cama e algumas onomatopéias como "".

Chegamos agora, considerando, é claro, toda a unidade da obra, ao seu ponto mais elevado: Mistério do Planeta. Composta por Morais e Galvão a letra, como sempre deveria acontecer, mostra e/ou segue a orientação do título, e portanto, não é de fácil intelecção. Vou tentar iluminar alguns mistérios.
Os perfeitos arranjos iniciais, assim como todos do elepê, são de Moraes e Pepeu, e a interpretação de uma beleza lírica, aliás o momento é de um lirismo ímpar, fica à cargo de Paulinho Boca de Cantor. O Mistério explícito na música é aquele que se não encontrará nos livros, teorias e etc, ele só será encontrado vivendo;


"Vou mostrando como sou e vou sendo como posso. Jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos. "


E nas três fases da vida, que é comum à todos [ou deveria] :


"O tríplice mistério do "stop", que eu passo por e sendo ele no que fica em cada um".


Todo esse clima é muito bem construído e sustentado, além dos citados arranjos, pelo baixo e percussão do pessoal do A Cor do Som, e culmina com um dos maiores solos de toda a história: cortante, limpo, preciso, sem "fritações", - Pepeu no auge dos seus 20 anos!.

A próxima A Menina Dança parece ter sido escrita para o jeitinho irreverente de Baby [claro que antes dela virar evangélica. Sim, isso mesmo, Evangélica!], a letra já foi interpretada como mostrando uma gravidez e também como de ter conotação sexual. As duas posições são válidas considerando versos como : "E dentro da menina, a menina dança" e "Mas eu mesma viro os olhinhos"; mas como diz outra música dos Novos Baianos [12] "Mãe pode ter e ser bebê e até pode ser Baby também", então, assim, contemplemos as duas proposições.

Caminhando já para a parte final do disco ouçamos Besta é Tú que, num primeiro momento, sempre se mosta como sendo não muito profunda e até mesmo uma brincadeira, mas num outro nível, parece nos alertar contra a realidade que, de maneira vária, apreendemos como normal. Contrariando essa primeira impressão, a canção tem algo de filosófico que me remete à Nietzsche, precisamente, Assim Falou Zaratustra, que nos seus discursos, o terceiro, Zaratustra profere algumas palavras, as quais transcrevo algumas agora, para uma melhor entendimento[13]:

DOS CRENTES EM ALÉM MUNDOS.


Um dia, Zaratustra elevou a sua ilusão mais além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos.Obra de um deus dolente e atormentado lhe pareceu então o mundo.“Sonho me parecia, e ficção de um deus: vapor colorido ante os olhos de um divino descontente.Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tu, vapor colorido me parecia tudo ante os olhos criadores. O criador queria desviar de si mesmo o olhar... e criou o mundo.Para quem sofre é uma alegria esquecer o seu sofrimento. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo me pareceu um dia o mundo.Este mundo, o eternamente imperfeito, me pareceu um dia, imagem de uma eterna contradição, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador.Da mesma maneira projetei eu também a minha ilusão mais para além da vida dos homens à semelhança de todos os crentes em além-mundos. Além dos homens, realmente?Ai, meus irmãos! Este deus que eu criei, era obra humana e humano delírio, como todos os deuses.Era homem, tão somente um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma saía das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e nunca veio realmente do outro mundo.Que sucedeu, meus irmãos? Eu, que sofria, dominei-me; levei a minha própria cinza para a montanha; inventei para mim uma chama mais clara. E vede! O fantasma ausentou-se!Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas. Assim falo eu aos que creem em além-mundos.Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas. Assim falo eu aos que creem em além-mundos.Sofrimentos e incompetências; eis o que criou todos os além-mundos, e esse breve desvario da felicidade que só conhece quem mais sofre. A fadiga, que de um salto quer atingir o extremo, uma fadiga pobre e ignorante, que não quer ao menos um maior querer; foi ela que criou todos os deuses e todos os além-mundos" [...]
[Grifos Meus]

A instrumental Bilhete pra Didi, explicita toda essa mistura e versatilidade que venho ressaltando, frevo, rock, baião, todos aqui, em mais uma bela demonstração de pegada de Pepeu Gomes. [Ah! O Didi que aparece no nome da música é o baixista Didi Gomes, irmão de Pepeu, que participa nessa gravação e entrou definitivamente pra banda em 76].

Pra fechar a obra, temos um repeteco de Preta Pretinha, versão reduzida, 3 minutos e 25 segundos, que foi pensada para ser tocada nas rádios, pois a outra, de mais de 6 minutos e meio, era impensável de serem lá vinculadas, mas contrariando expectativas esta última fez o maior sucesso.

Espero que tenha sucitado, com essa exposição, a vontade de vocês ouvirem este álbum que, para limitá-lo à uma classificação é, para mim, o maior albúm de música popular brasileira de todos os tempos. Não só para mim, mas outros orgãos de comunicação, como a revista Rolling Stone, também têm este vaticínio. [vejam aqui]

Bem, descansem da [extensa] leitura.

Link para baixar o CD aqui.



E Bom Som!



Sofista Minimus.


______________________
[1]. Novos, pois, velhos baianos se tratavam de Caetano, Gil, Gal e Bethânia.

[2]. Um compacto simples e outro duplo. Informações e datas no site "Oficial": http://www.sombras.com.br/novosb/novosb.htm

[3] . O próprio Moraes Moreira, no programa Ensaio da Tv Cultura, em 1973, afirmou que o grupo seria uma mistura de Jimi Hendrix com Jacob do Bandolim.

[4]. O Samba-exaltação, era um [sub-] gênero que se propunha a elevar as características sejam elas regionais ou de todo país. Teve talvez o seu maior expoente em Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, gravada na década de 30.

[5]. Luiz Galvão. Anos 70: Novos e Baianos.

[6]. Ezra Pound. ABC da Literatura. Introdução de Augusto de Campos.

[7]. Esse expressão da guitarra, presente, do início ao fim da música, conexa com a harmonia, é que me faz gostar, entre outras músicas, de Iron Man do Black Sabbath.

[8]. Pepeu Gomes e seu irmão o baterista Jorginho também faziam parte da banda, mas ao se casar com Baby, foi incorporado aos Novos Baianos.

[9]. Há também faixas, se não genuinamente bossanovísticas, fortemente influenciadas por esta como Quando Você Chegar até a satírica Sensibilidade da Bossa etc.

[10]. Ruy Castro. Chega de Saudade. pág. 321.

[11]. Bebel (Isabel), do Albúm Novos Baianos ou Linguagem do Alunte, composta por João Gilberto também é uma canção de ninar.

[12]. Sorrir e Cantar como Bahia do Albúm Novos Baianos Futebol Clube, de 1973.

[13]. Nietzsche. Assim Falava Zaratrusta. pag. 42.

12 comentários:

  1. O disco é muito bom. Ouvi pouquíssimas vezes. Tem uma história interessante. Tive um subeditor em um jornal que era fã de Novos Baianos e batizou o time dele de Chorare. Sempre que vejo o disco lembro das partidas do Chorare. hahaha.

    Grande Abraço.

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  2. Obrigado, Marcos e Renan, pela sempre aguardada visita.

    Renan, acho que os Novos Baianos ficariam felizes em saber que inspiraram nome de algum time, logo eles tão aficcionados pelo futebol, que até batizaram um disco de Novos Baianos Futebol Clube.
    Mas acho um tanto incomum o nome Chorare pra um time de futebol. Imagino os trocadilhos e piadas prontas em caso de derrota do time, rs.

    Abraço,

    Sofista.

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  3. Belo texto, meu caro.
    Os Novos Baianos são a melhor expressão do desbunde da década de 1970...termo louco,né?rsrsrs...
    Enfim, uma bela roda de samba psicodélica.
    "Novos Baianos Futebol Clube" também é uma obra prima da MPB.
    Parabéns pelo blog.
    Abraços.

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  4. Big Clash,

    Obrigado! Não só os Novos Baianos, mas em se tratando de "desbunde" não podemos esquecer dos Secos e Molhados que se limitando ao termo foram até mais adiante...

    Ao que me parece você gosta de música, então fique à vontade pra quando quiser participar.

    Abraço,

    Sofista.

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  5. Bem lembrado, sofista.Os Secos & Molhados são a ousadia pura...belos álbuns.
    Valeu pela visita lá no Fuxuca...estou criando um link de seu blog por lá.
    Abraços.

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  6. Big Clash,

    Obrigado.

    Também criarei um link do teu aqui.

    Abraço!

    Sofista.

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  7. Zawir,

    Obrigado! Apareça mais vezes...

    Abraço,

    Sofista.

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  8. Gostei muito do texto, bem informativo. Encontrei enquanto pesquisava pra uma postagem no meu recém-criado blog e recomendei!

    Passa lá: http://minisaiademim.blogspot.com/.

    Um abraço.

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  9. Nana,

    Obrigado!

    Já dei uma passadinha no blog, até comentei, rs.

    Obrigado pela recomendação e volte mais vezes!

    Forte Abraço,

    Sofista Minimus.

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  10. É um album realmente muito gostoso de ouvir. Tentei mostrar para os meus amigos, mas eles são muito ocupados ouvindo música pop internacional. É uma pena...

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